Quando os ipês florescem





Foi exatamente no dia em que os ipês floresceram. Lembro-me, doutor, que as ruas estavam ladeadas por colunas amarelas e as pessoas nem se davam conta – quanta gente abestada, meu Deus! Creio que para boa parte das gentes, as paisagens não passam de pano de fundo para continuidade mecânica intercalada no intervalo que vai do nascer ao morrer. Entre um ipê e outro ipê, entre um passo e outro passo, ignoramos o relógio natural a marcar brevidades.

Perdoe-me a ansiedade, mas destas coisas que lhe digo e me custam memória, assustadora foi a que veio. De repente aquela vontade de caminhar. Enforcar o trabalho. Ignorar agendas. Não pensar em nada além de minha própria vontade de caminhar. Joguei o telefone celular fora. Desci a rua de casa, parei um pouco na banca de jornal e pela primeira vez, em anos, não tive interesse nas manchetes. Continuei a andar. Respirava fundo: brincava de guardar o ar nos pulmões pelo máximo tempo possível. Coisa de criança, sei disso, doutor. Mas que prazer me fazer criança assim, respirando apenas. Certo, fiquei tonto. Mas não liguei. Continuei caminho e guardando ar.

Perambulei por horas. Dei conta disso pela quantidade de suor em minha camisa. Resolvi tirá-la e descalçar os sapatos. Assim, sem querer chegar, cheguei a um bairro no qual nunca antes estivera. As pessoas eram-me estranhas e nas ruas já não havia um único amarelo dos ipês. Aliás, eu não via por ali árvore alguma, verde algum. Apenas gente e concreto. Fiquei um pouco preocupado. Em que raio de lugar, afinal, estaria? Mas, resolvi continuar, meus pés me obrigavam a isso. As preocupações se dissipam no andar depressa e aparentemente sem rumo. Tenho essa crença, sim senhor.

Ao longe avistei uma longa fila. Todos aguardavam entrar num prédio velho e acho que abandonado. Perguntei ao último da fila a razão daquilo. O homem, de rosto cúbico e olhos sem vida, nada disse. Ignorou-me. E a mesma coisa se repetiu com mais três ou quatro seres geométricos aos quais repeti a pergunta. Nada.

O senhor sabe, doutor, a curiosidade é a pá do coveiro e move o mundo. Eram centenas de pessoas sectárias da ordem e silêncio a fitar nucas. Seguíamos rápido, logo entrei no prédio. O contraste da luminosidade me deixou cego por alguns segundos. Na rua, há pouco, o sol brilhava. Meio-dia talvez? Demorei um pouco para me acostumar com a penumbra e, instintivamente, segui a nuca da pessoa que estava na minha frente.

O corredor marrom-cinza fazia-se estreito. O ar era pesado e viciado. Um cheiro de mofo ardia nas narinas. Ninguém falava nada. As pessoas fitavam nucas como se estivessem olhando para uma parede de chumbo. Emoção nenhuma. Transe puro. O corredor ficava cada vez mais escuro. Estreito. Mas logo chegamos a uma sala enorme. Sem janelas. De contato com o mundo exterior somente aquele túnel mofento pelo qual havíamos chegado ali. Mofo. Calor. Centenas de pessoas esperando. Esperei. Mesmo porque não dava para voltar. Esperei.

Depois de algumas horas, minutos, sei lá - pois os escuros guardam o estranho costume de esconder o tempo -, uma moça puxou-me pelo braço. Esforcei-me para ver o seu rosto. Parecia-me familiar. Morena, talvez. Bonita, talvez. Talvez a minha corretora de seguro. Senhorita pudica por inteiro. Ou a vagabunda do puteiro Real. Sei não. Dei-lhe o braço e fui guiado para o canto oposto ao que estávamos. Entramos depois numa espécie de porão estreito. O cheiro de mofo aumentava junto com a escuridão. Ela agora andava abraçada a minha cintura e me direcionava pelo labirinto. A certa altura paramos. Num tempo, que de tão breve não se conta e que de tão eterno não se esquece, ela beijou-me. Tirou a roupa. Abraçou-me. Desapareceu. Mudo e tonto, levei algum tempo para me recuperar do susto e do prazer inesperado. Refeito, tornei-me desespero. Precisava sair dali. Comecei a correr pelos escuros até encontrar uma portinhola. Ganhei a rua e vi que não era a mesma rua pela qual havia entrado no prédio. Olhei para o Sol: cego, respirei em alívio e tornei a caminhar sem rumo.

Neste ano, doutor, dois passados após esses acontecimentos, os ipês floresceram antes da época. Ainda estamos no inverno e as ruas são escorregadias com tantas flores espalhadas pelo vento. Não me julgue leso somente porque uma vez por semana entro na fila do prédio do corredor mofado. Espero. Há de se encontrar prazer nisso. É a espera que nos faz vivos.

O homem da cara cúbica é meu amigo. Pelo menos assim eu acho, pois no seu olhar, sempre a guardar a nuca da frente, brilhou a vontade de um dia conversarmos. A moça? Sim, doutor, nunca mais encontrei-me com aquela moça que talvez fosse morena. Encontro nesses dias outras mulheres. Todas parecidas com alguém que conheci em minha vida. Mãe, minhas irmãs, colegas de escola, antigas namoradas, freiras do colégio... Entretanto, não são quem imagino que sejam. Porém, na dúvida, jamais permito que elas repitam o beijo, ou ainda se dispam, como fez aquela moça que talvez fosse pudica ou vagabunda. Não sou dado a incestos, sacrilégios. A fidelidade faz parte do meu caráter.

O mofo já não me incomoda. Treinei muito para não respirar durante a travessia pelos corredores do prédio. Passo tempo sem inalar um único grama de ar. Doutor, sinto que os ipês aprovam esta dose extra de oxigênio que lhes ofereço. Agradecidos, eles me dão em troca flores fora de época e, em exuberâncias, me fazem menos penoso este caminho quiçá finado em longa espera.

Por quem rezam as mulheres


Ela não era nenhuma capitulina das páginas de Machado de Assis, mas tinha os olhos de ressaca, “oblíquos e dissimulados”. Trazia nas mãos um ramalhete de flores e duas velas. Vestia-se sobriamente com um casaquinho bege e saia no mesmo tom. No rosto, bonito e bem feito, o retrato de todas as ausências. Apressada, entrou na igreja sem olhar para os lados. Não sei por que cargas d’água resolvi acompanhá-la. Há anos que eu não entrava numa igreja. Ando meio desacreditado nas coisas do céu. Na realidade, de há muito as igrejas se tornaram em minha retina esplêndidos monumentos arquitetônicos. Algo belo de se observar e que quebra a mesmice da cidade. Às vezes, gosto de ver seus portais enormes, mas minhas pernas não se sentem com vontade de caminhar até eles; meus joelhos doem e dobrá-los diante de altares é uma tarefa mais do que penosa.
Mas mesmo assim, gosto de erguer os olhos para os céus e admirar os campanários das igrejas. Raramente ouço os sinos dobrarem; mas é só isso: um som metálico que me chama para algo esquecido, para o tempo da inocência, quando entre uma brincadeira e outra, acreditava na bondade dos homens e em seus deuses justos e infalíveis.
Mas eis o que eu queria dizer: cruzei o portal da Igreja Católica com os olhos fixos naquela mulher misteriosa. Era nova, de cabelos claros e lisos, devia contar 35 anos no máximo, uma balzaquiana perfeita. Ela seguiu pelo corredor central rumo ao altar. Fiz hora na entrada da igreja, não queria demonstrar que a seguia. Tentei o sinal da cruz: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, e fiquei com uma dúvida danada. Não sabia mais qual lado do peito devia tocar primeiro: o esquerdo ou o direito? Talvez por ser canhoto, tenha esquecido este detalhe das intermináveis aulas de catecismo dadas por uma freira no Colégio Santo Inácio. A freira era boazinha, mas nos apavorava com suas histórias das danações no Inferno e Purgatório. Tínhamos apenas sete anos e rezávamos muito antevendo os pesadelos e a cama molhada de xixi.
Com o canto do olho tentei alcançar a moça. Ela estava ajoelhada perto de um altar que ficava na lateral da igreja. Depositou as flores aos pés de Santa Rita de Cássia, acendeu as velas e abandonou-se em orações. Deveria ser alguma causa impossível, julguei. Santa Rita de Cássia tem fama de resolver qualquer coisa, principalmente partos e doenças. Será que ela estaria doente? Não, não parecia. Talvez, alguém da família? Vai saber... Fiquei ali parado, olhava para a moça e para a água benta. Havia esquecido mais este detalhe: o sinal da cruz é reforçado em seu significado quando feito com água benta. Tentava resolver o dilema: direita ou esquerda, com água ou sem água benta?
A moça do olhar oblíquo se levantou. Procurei me distrair na frente de São José, ele não ligaria se eu fingisse uma oração. Talvez uma que reforçasse a reza da moça, que a ajudasse em seus pedidos. Pensei em algo para iniciar a tarefa. Começar pelo Pai Nosso seria uma boa. Reza pronta, que não exige esforços de composição. Não fiz nem uma coisa nem outra. Havia esquecido o Pai Nosso e meu coração não estava inspirado para inventar uma reza nova.
A moça passou por mim. Seus olhos estavam cheios d’água. Lágrimas bentas, por certo. Por quem chorava? Nunca saberia. Ela despediu-se da igreja e seus santos com o sinal da cruz. Fiquei onde estava matutando: direita ou esquerda; vem a nós o Vosso reino (e depois, que vem depois?)
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