Um pedido de Natal


Entra ano e passa ano e a mesma coisa: juro que não escreverei mais sobre o tema Natal. Mas, esta é uma luta inglória, sou um repórter do meu tempo e meu tempo, pelo menos agora, se faz Natal. Vejo isso nos olhinhos vivos da criança que namora brinquedos numa vitrine. Vejo isso, nas propagandas de TV, no movimento do açougue e das ruas.

Mas algo me diz que tudo que acontece não é real. Aqui na minha frente tenho as grandes estatísticas das Nações Unidas e vejo que o mundo é uma grande tragédia transformada em números: quase 1 bilhão de pessoas morrendo de inanição no mundo, uma criança morta de fome a cada 5 segundos...

É, meu amigo... As estatísticas nos são ótimas, pois tragédia traduzida em número quase não dói nada, comove pouco. Os políticos safados já descobriram isso faz tempo. O povo morrendo de fome e doença, mas lá estão eles com números provando exatamente o contrário. Qualquer tragédia na boca desses caras, além de número, torna-se uma oportunidade deles demonstrarem um grande coração ao se comoverem com lágrimas de crocodilo, dizendo que tudo está sendo resolvido, que recursos estão sendo liberados e blá, blá, blá...

Por estas razões resisto em escrever sobre o Natal, pelo lado comercial e demagógico que envolve a data. Entretanto, não posso deixar de lado a grande esperança colocada no Natal por pessoas que realmente desejam o bem de seus semelhantes. Já andei muito pelo mundo e vi que temos entre nós grandes almas, quase sempre discretas, que trabalham para seu semelhante sem esperar até mesmo um obrigado. É certo que vi muita maldade, sujeitos forjados na maldade. Mas não ligo para os artífices do mal. Sei que o mal sempre perde, pode demorar, mas sempre perde. Os maus nunca contam com a grandeza espiritual das pessoas boas e, pequenos, são derrotados por toda parte e sempre.

E é para as almas iluminadas que vale a pena escrever neste Natal, ou em qualquer Natal. Para estas grandes almas que, incógnitas, estão por aí lutando para botar um bocadinho que seja de amor nos corações do homem.
Por isso não vou pedir ou desejar coisas que sei que esqueceremos já nos primeiros minutos do Ano Novo. Não vou pedir presentes para os necessitados. Não vou pedir comida nas mesas dos mais humildes. Peço, e nisso você pode ajudar, para que incluamos em nossas orações estas pessoas de almas iluminadas que trabalham quietas, quase que escondidas, para que o homem melhore de fato e não só de boca para fora. Rezemos para estas pessoas que fazem de suas vidas um sacerdócio para o bem. Pois, quando elas vencerem, e vencerão, não precisaremos mais contabilizar as tristes estatísticas da ONU em nossa ceia de Natal. Não precisaremos mais contar as crianças mortas de fome enquanto que, com fartura, alimentamos nossos filhos. Não precisaremos mais desejar um feliz Natal, porque todos os nossos dias hão de estar repletos do espírito natalino de amor e de bondade infinita.

A página de Deus na internet


Sou um aficionado pela internet. Pertenço à geração que guarda por máxima aquilo que nem Descartes ousou pensar: “tenho dedos logo existo” (habeo digiti ergo sum). E por esta paixão incondicional e que toma boa parte de minha vida vigiada lá das alturas, lamento certas lacunas encontradas no mundo virtual. O site de Deus, por exemplo, cara importante, mas que não dá a mínima para a cibernética e suas aplicações.

Ele é deveras um sujeito ocupado. Com certeza, cuidar do mundo todinho e contar quantos espirros damos por dia deve tomar um tempão. Pensando nisso e a título de cooperação com o mundo do Divino, desenvolvemos projeto de página virtual para o Todo Poderoso, que poderia ter esse nome mesmo, e ser acessada pelo endereço www.todopoderoso.com.

No conteúdo estático da página, colocaríamos uma breve apresentação com links para a Bíblia – cópias dos afrescos de Michelangelo poderiam dar fundo à página. Ainda no conteúdo estático, links do tipo “fale com a Ouvidoria”, no caso, Jesus. “Fale com o Síndico”, no caso, São Pedro. No mesmo clima do “fale com”, poderíamos lincar o Purgatório, o Limbo e o Inferno – este último meio escondido, para evitar competição ou desvios para sites do próprio mundo terreno.

Uma lojinha virtual para dar conta dos custos da empreitada também seria bem-vinda. “Livros Sagrados”, “Imagens e Ícones”, “Souverniers das Guerras Santas”, “Água do Rio Jordão” e “Retratos do Paraíso” poderiam ser alguns dos itens colocados à disposição dos navegantes crentes.

Também penso em incluir um link para “Notícias do Céu”, sob responsabilidade de São Lucas ou qualquer outro evangelista, mui dignos assessores de imprensa da Casa Celeste. Assim, teríamos mais uma reserva de mercado para os jornalistas, já que as coisas aqui neste vale de lágrimas andam difíceis pra cachorro. (JFN).

Natal com franguinho na panela

A rigor, as necessidades do homem para se manter vivo são poucas, mas os recursos (mão-de-obra, terra, capital...) para satisfazê-las são escassos. Este é o dilema da Economia, que procura a melhor forma de alocar recursos produtivos finitos para satisfazer as necessidades humanas infinitas.

Nos anos 1960, um psicólogo norte-americano de nome Abraham Harold Maslow (1908–1970) reinventou a roda ao determinar uma escala das necessidades humanas. A escala começava com as fisiológicas – comer, dormir, sexo, etc. –, depois, segurança – a casa, por exemplo –, sociais – clube, grupos de afinidades –, status – sinais exteriores que indiquem nossa posição social, carros, jóias, etc – e por último, a auto-estima – a satisfação plena das necessidades do homem, inclusive intelectuais e espirituais. Digo que Maslow reinventou a roda, porque Voltaire (1694–1778) já havia tratado deste tema no seu Dicionário Filosófico, embora de forma menos detalhada.

Para os capitalistas, a escala de Maslow caiu como uma luva para justificar a crueldade do sistema. Nesta escala ficam claros os “fatores psicológicos” que determinam o consumo dos seres humanos. Quanto mais avançamos na escala, mais sofisticados ficamos, mais artigos supérfluos consumimos. Isto seria o lógico dentro de um cenário favorável, numa economia que nos proporcione renda ou emprego.

Mas nem tudo são flores no jardim da safadeza. Como ainda não descobrimos um método para fazer nascer dinheiro em árvore, é evidente que, em tempos de crise econômica, o consumo dos bens supérfluos, principalmente os que têm alto valor agregado, sofre redução na demanda, porque depende de crédito ao consumidor. E a crise nada mais é do que isso, desconfiança do mercado e pouca oferta de crédito, ou crédito caro, com taxas de juros absurdas.

Ao contrário do que muitos pensam, é de nossa natureza a prudência quando o assunto é o estômago. Pois as nossas necessidades básicas imperam sobre as outras. Resultado, há uma tendência natural de se poupar recursos para tempos que se anunciam para lá de bicudos. Por isso, fico perplexo ao ver tanta besteira em nossos noticiários econômicos. Meus colegas tratam a crise mundial como o fim do mundo e ficam espantados ao verificarem o que acontece no pequeno comércio de varejo, baseado em compras à vista e que continua esbanjando saúde de vaca premiada.

O sucesso do varejo tem uma razão muito simples: ninguém vai parar de comer, se vestir, constituir família e ter filhos. Bocas têm que ser alimentadas, as pessoas hão de continuar se protegendo com roupas, sapatos e usando remédios. Portanto, o que está acontecendo é uma redução nos gastos com coisas que podem ficar para depois. O carro, a geladeira novinha, o fogão zero, tudo isso pode ficar para depois. O que não pode ficar para depois é o arroz, o feijão e o pão nosso de cada dia.

É evidente que, com o desemprego, vamos ter uma redução de consumo dos produtos de subsistência e inevitável queda de preços, pois vamos estar com uma demanda aquém da normal. Em outras épocas isso seria muito preocupante, pois não contávamos com mecanismos sociais que dessem as garantias mínimas ao desempregado. Mas temos hoje o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), Seguro Desemprego e em último caso, o Bolsa Família.

Temos aí, portanto, tempos difíceis a serem vencidos. Mas a despeito do sensacionalismo da imprensa do apocalipse, que na verdade esconde incomensurável ignorância, estamos com o franguinho garantido na panela. O frango deverá contar com um preço de pelo menos 10% abaixo do que no Natal de 2007. E, definitivamente, enquanto tivermos ao menos uma penosa no mundo, ele não acaba!

Os neo-miseráveis

Creio que boa parte dos miseráveis que habita nosso país é obra única e exclusiva de nossos governos. São miseráveis infelizes gerados pelas nossas ineficazes políticas de distribuição de renda, que sempre privilegiaram minúscula casta social, ou ainda, pela absurda e proposital ignorância imposta ao povo pelo governo – que sempre foi, em qualquer época, mero joguete nas mãos desta casta de privilegiados, os verdadeiros donos do Brasil.

Pois bem, estamos no meio de uma crise econômica mundial e sentimos novamente as forças do atraso tramarem contra a possibilidade de acabarmos definitivamente com a pobreza e conseqüente miséria em que se larga no lombo dos brasileiros. Com a crise, o governo Lula adotou algumas medidas que continuam dando privilégios aos banqueiros e acionistas das fábricas de automóveis. Entretanto, aos trabalhadores que perderam seus empregos, ou estão ameaçados de desemprego, nada foi ofertado. Afinal, o que sempre conta é o lucro crescente, mesmo que obtido com a substituição de mão-de-obra pela máquina que tudo faz e pouco custa.

Nos bancos, este processo de substituição é extremamente visível. Já nas montadoras, fábricas de automóveis, por estarem mais distantes do consumidor, quase não notamos que o mesmo processo está em curso há pelo menos 100 anos. Primeiro no fordismo, com o desenvolvimento da linha de produção e barateamento dos automóveis, depois no toyotismo ao se automatizar o processo produtivo, na mais desumana forma encontrada de exploração de nossos semelhantes, calcada na psicologia que “convence” os operários de que eles também são peças importantes da empresa e por isso devem se dedicar de corpo e alma para o sucesso do empreendimento.

Na realidade, uma lavagem cerebral que desmonta qualquer possibilidade do trabalhador questionar o que está sendo a ele imposto. Ou seja, a base deste discurso sacana se firma no trabalho como um privilégio de poucos e não como um direito de todos. Formamos assim duas classes sociais, a dos miseráveis empregados e a dos miseráveis desempregados. A primeira é tratada pelo capital como uma peça que pode ser substituída a qualquer momento e a segunda, como uma espécie de reserva de votos dos partidos políticos. Partidos que investem na equivocada estratégia da miséria, determinante de uma não menos miserável dependência deste povo para com os programas sociais do governo, como é o caso do Bolsa Família.

Com crise ou sem crise, fato é que os bancos brasileiros continuam enchendo as burras e demitem todos os dias. Já as montadoras preferem continuar com as burras cheias economizando no gasto com pessoal. O estranho disso tudo é que, mesmo com a garantia de recursos oferecida pelo governo Lula, parte das montadoras de automóveis deu férias coletivas a seus empregados. Ontem, em Curitiba, a Volvo anunciou demissão de 430 operários. E isto parece ser só o início do funcionamento de nossas novas fábricas de miseráveis. Até quando vamos continuar a aplaudir as iniciativas do governo Lula que até agora só beneficiou a quem sempre ganhou? E o povo, aquele que acreditou na esperança vencendo o medo, como é que fica? A resposta parece que não é difícil, pois a miséria para o governo parece ser o nosso estado natural, seja ela física, moral ou até mesmo intelectual.

Notícia ou espetáculo de horror?

Ficamos admirados com a capacidade da imprensa em transformar fatos trágicos e de interesse local em grandes dramas nacionais. O processo para que isso aconteça é meio nebuloso, mas sabemos que, no caso da TV, tem um único objetivo, segurar o telespectador em frente ao aparelho de televisão.
Recentemente, tivemos nossos lares invadidos por gente jogada pela janela. Em bom português – copiado aos franceses – este fenômeno chama-se defenestração. Pois bem, o fato em si, explorado pela imprensa, ganhou contornos de drama ao se destacar o método, com poucos questionamentos sobre as verdadeiras causas das mortes. A morte em si já é notícia, o infanticídio é mais ainda e criança jogada pela janela é a dramaticidade com potencial de quebra de recordes de audiência. E assim foi feito, transmissões ao vivo, guerra pelos melhores lugares para os cinegrafistas e fotógrafos, programação normal interrompida para boletins, etc, etc. Notem, que neste ponto o jornalismo já havia acabado. As TVs simplesmente entraram no terreno das hipóteses, das suposições e até mesmo da ficção ao fazer teatro em suas bem produzidas reconstituições.
Outro fato que determinou a dramatização da notícia foi o do seqüestro em Guarulhos (SP), conhecido como caso Eloá. Também tinha uma janela como personagem secundária, mas aí não houve a defenestração. Neste drama, o que contou mesmo foi a tragédia que se anunciava justamente pela janela. O drama anunciado pela janela e de triste desfecho.
Bom, para nossa reflexão, cabe verificar a importância destas notícias em nossas vidas. Ora, no repousar da cabeça no travesseiro veremos isso tudo não nos trouxe nada, ou quase nada mesmo, a não ser a certeza de que o homem não abandonou de todo seus instintos primitivos e o principal deles, matar seus semelhantes, principalmente os objetos de paixão.
Pois bem, aqui cabe mais uma pausa. Paixão, que vem lá do nosso antigo latim, tem o sofrer como seu significado original, por isso dizemos “Paixão de Cristo”, ou seja, o “Sofrimento de Cristo”. Nesses dois casos citados temos claramente crimes cometidos e motivados por este sofrer; passionais como devem ser classificados. Crimes passionais são tão antigos em nossa história que podemos dizer que eles nasceram com o homem. A alegoria de Caim e Abel na Bíblia é um exemplo. Outro vem da Mitologia Greca, com Medéia que mata seus dois filhos por ciúme de Jasão, que a trocou por outra, também morta pela mulher ciumenta.
Ative-me a essas personagens alegóricas e mitológicas porque as julgo exemplos suficientes da loucura movida pela paixão – pelo sofrimento que desatina – e que não é preciso a TV nos fazer lembrar disto durante horários em que nossas crianças estão na sala. E pior, colocando entre as cenas de horror, anúncios de chocolate, carros, jóias e sorteios de brindes.
A realidade já nos é bastante.

Carne de pescoço é o prato do paranaense




Li num guia turístico que o prato típico do Paraná é o barreado. Bem feito para nós! Temos com referência de nossa gastronomia um prato que metade dos paranaenses nunca provou. A receita é simples, carne de segunda, fervida em pote de barro até desfiar e acompanhada da preguiça: farinha de mandioca –crua, sem torrar – e banana cozida (um horror!). Isso sem contar o nome “barreado”, feio pra dedéu e que tira o apetite de qualquer um que tenha amor ao estômago.

Quem elegeu este prato como típico desconhece o Paraná, ou está de brincadeira com a gente. Creio que a primeira hipótese é mais provável, é desconhecimento mesmo. Em conversa com meus alunos, professores, colegas jornalistas, fico abismado como as pessoas conhecem muito pouco de nosso estado. Aqui em Curitiba, com poucas exceções, conhece-se apenas o próprio umbigo, que pode se estender de São Paulo às praias de Santa Catarina.

O Norte do Paraná e outras regiões praticamente inexistem, são coisas distantes, que figuram no discurso dos políticos, nos livros de geografia, mas jamais pulsam como deveriam no coração de quem apenas leva o gentílico de paranaense. Somos um estado que, como já disse em outros textos, se apresenta divido em pelo menos três outros. Não são somente os três planaltos e o litoral que nos colocam em distanciamentos. Não são as serras e chapadas que nos separam. São as culturas ímpares que nos tornam paranaenses diferentes. Exemplo disso é quando viajamos para outros lugares do Brasil. As perguntas são: “Você é gaúcho? Catarinense? Mineiro? Paulista? Curitibano?” – Mas jamais, alguém nos pergunta se somos paranaenses.


Está certo que somos um estado recentíssimo. Algumas de nossas cidades não completaram nem mesmo meio século de existência. Entretanto, há de se examinar a razão da falta de um único fio condutor que nos dê o princípio de uma cultura verdadeiramente paranaense e que possa ser identificado em qualquer lugar. A começar pela comida.

Temos em nossa gente tradições que se desencontram e que, de tão preservadas, não se mesclam. Entretanto, como paranaense convicto, creio que é apenas uma questão de tempo para sermos reconhecidos verdadeiramente como nativos deste estado, quer seja pelo sotaque, quer seja pelos costumes. Mas pelo amor de Deus, barreado como nosso prato típico não dá para engolir!

Quando os ipês florescem





Foi exatamente no dia em que os ipês floresceram. Lembro-me, doutor, que as ruas estavam ladeadas por colunas amarelas e as pessoas nem se davam conta – quanta gente abestada, meu Deus! Creio que para boa parte das gentes, as paisagens não passam de pano de fundo para continuidade mecânica intercalada no intervalo que vai do nascer ao morrer. Entre um ipê e outro ipê, entre um passo e outro passo, ignoramos o relógio natural a marcar brevidades.

Perdoe-me a ansiedade, mas destas coisas que lhe digo e me custam memória, assustadora foi a que veio. De repente aquela vontade de caminhar. Enforcar o trabalho. Ignorar agendas. Não pensar em nada além de minha própria vontade de caminhar. Joguei o telefone celular fora. Desci a rua de casa, parei um pouco na banca de jornal e pela primeira vez, em anos, não tive interesse nas manchetes. Continuei a andar. Respirava fundo: brincava de guardar o ar nos pulmões pelo máximo tempo possível. Coisa de criança, sei disso, doutor. Mas que prazer me fazer criança assim, respirando apenas. Certo, fiquei tonto. Mas não liguei. Continuei caminho e guardando ar.

Perambulei por horas. Dei conta disso pela quantidade de suor em minha camisa. Resolvi tirá-la e descalçar os sapatos. Assim, sem querer chegar, cheguei a um bairro no qual nunca antes estivera. As pessoas eram-me estranhas e nas ruas já não havia um único amarelo dos ipês. Aliás, eu não via por ali árvore alguma, verde algum. Apenas gente e concreto. Fiquei um pouco preocupado. Em que raio de lugar, afinal, estaria? Mas, resolvi continuar, meus pés me obrigavam a isso. As preocupações se dissipam no andar depressa e aparentemente sem rumo. Tenho essa crença, sim senhor.

Ao longe avistei uma longa fila. Todos aguardavam entrar num prédio velho e acho que abandonado. Perguntei ao último da fila a razão daquilo. O homem, de rosto cúbico e olhos sem vida, nada disse. Ignorou-me. E a mesma coisa se repetiu com mais três ou quatro seres geométricos aos quais repeti a pergunta. Nada.

O senhor sabe, doutor, a curiosidade é a pá do coveiro e move o mundo. Eram centenas de pessoas sectárias da ordem e silêncio a fitar nucas. Seguíamos rápido, logo entrei no prédio. O contraste da luminosidade me deixou cego por alguns segundos. Na rua, há pouco, o sol brilhava. Meio-dia talvez? Demorei um pouco para me acostumar com a penumbra e, instintivamente, segui a nuca da pessoa que estava na minha frente.

O corredor marrom-cinza fazia-se estreito. O ar era pesado e viciado. Um cheiro de mofo ardia nas narinas. Ninguém falava nada. As pessoas fitavam nucas como se estivessem olhando para uma parede de chumbo. Emoção nenhuma. Transe puro. O corredor ficava cada vez mais escuro. Estreito. Mas logo chegamos a uma sala enorme. Sem janelas. De contato com o mundo exterior somente aquele túnel mofento pelo qual havíamos chegado ali. Mofo. Calor. Centenas de pessoas esperando. Esperei. Mesmo porque não dava para voltar. Esperei.

Depois de algumas horas, minutos, sei lá - pois os escuros guardam o estranho costume de esconder o tempo -, uma moça puxou-me pelo braço. Esforcei-me para ver o seu rosto. Parecia-me familiar. Morena, talvez. Bonita, talvez. Talvez a minha corretora de seguro. Senhorita pudica por inteiro. Ou a vagabunda do puteiro Real. Sei não. Dei-lhe o braço e fui guiado para o canto oposto ao que estávamos. Entramos depois numa espécie de porão estreito. O cheiro de mofo aumentava junto com a escuridão. Ela agora andava abraçada a minha cintura e me direcionava pelo labirinto. A certa altura paramos. Num tempo, que de tão breve não se conta e que de tão eterno não se esquece, ela beijou-me. Tirou a roupa. Abraçou-me. Desapareceu. Mudo e tonto, levei algum tempo para me recuperar do susto e do prazer inesperado. Refeito, tornei-me desespero. Precisava sair dali. Comecei a correr pelos escuros até encontrar uma portinhola. Ganhei a rua e vi que não era a mesma rua pela qual havia entrado no prédio. Olhei para o Sol: cego, respirei em alívio e tornei a caminhar sem rumo.

Neste ano, doutor, dois passados após esses acontecimentos, os ipês floresceram antes da época. Ainda estamos no inverno e as ruas são escorregadias com tantas flores espalhadas pelo vento. Não me julgue leso somente porque uma vez por semana entro na fila do prédio do corredor mofado. Espero. Há de se encontrar prazer nisso. É a espera que nos faz vivos.

O homem da cara cúbica é meu amigo. Pelo menos assim eu acho, pois no seu olhar, sempre a guardar a nuca da frente, brilhou a vontade de um dia conversarmos. A moça? Sim, doutor, nunca mais encontrei-me com aquela moça que talvez fosse morena. Encontro nesses dias outras mulheres. Todas parecidas com alguém que conheci em minha vida. Mãe, minhas irmãs, colegas de escola, antigas namoradas, freiras do colégio... Entretanto, não são quem imagino que sejam. Porém, na dúvida, jamais permito que elas repitam o beijo, ou ainda se dispam, como fez aquela moça que talvez fosse pudica ou vagabunda. Não sou dado a incestos, sacrilégios. A fidelidade faz parte do meu caráter.

O mofo já não me incomoda. Treinei muito para não respirar durante a travessia pelos corredores do prédio. Passo tempo sem inalar um único grama de ar. Doutor, sinto que os ipês aprovam esta dose extra de oxigênio que lhes ofereço. Agradecidos, eles me dão em troca flores fora de época e, em exuberâncias, me fazem menos penoso este caminho quiçá finado em longa espera.

Por quem rezam as mulheres


Ela não era nenhuma capitulina das páginas de Machado de Assis, mas tinha os olhos de ressaca, “oblíquos e dissimulados”. Trazia nas mãos um ramalhete de flores e duas velas. Vestia-se sobriamente com um casaquinho bege e saia no mesmo tom. No rosto, bonito e bem feito, o retrato de todas as ausências. Apressada, entrou na igreja sem olhar para os lados. Não sei por que cargas d’água resolvi acompanhá-la. Há anos que eu não entrava numa igreja. Ando meio desacreditado nas coisas do céu. Na realidade, de há muito as igrejas se tornaram em minha retina esplêndidos monumentos arquitetônicos. Algo belo de se observar e que quebra a mesmice da cidade. Às vezes, gosto de ver seus portais enormes, mas minhas pernas não se sentem com vontade de caminhar até eles; meus joelhos doem e dobrá-los diante de altares é uma tarefa mais do que penosa.
Mas mesmo assim, gosto de erguer os olhos para os céus e admirar os campanários das igrejas. Raramente ouço os sinos dobrarem; mas é só isso: um som metálico que me chama para algo esquecido, para o tempo da inocência, quando entre uma brincadeira e outra, acreditava na bondade dos homens e em seus deuses justos e infalíveis.
Mas eis o que eu queria dizer: cruzei o portal da Igreja Católica com os olhos fixos naquela mulher misteriosa. Era nova, de cabelos claros e lisos, devia contar 35 anos no máximo, uma balzaquiana perfeita. Ela seguiu pelo corredor central rumo ao altar. Fiz hora na entrada da igreja, não queria demonstrar que a seguia. Tentei o sinal da cruz: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, e fiquei com uma dúvida danada. Não sabia mais qual lado do peito devia tocar primeiro: o esquerdo ou o direito? Talvez por ser canhoto, tenha esquecido este detalhe das intermináveis aulas de catecismo dadas por uma freira no Colégio Santo Inácio. A freira era boazinha, mas nos apavorava com suas histórias das danações no Inferno e Purgatório. Tínhamos apenas sete anos e rezávamos muito antevendo os pesadelos e a cama molhada de xixi.
Com o canto do olho tentei alcançar a moça. Ela estava ajoelhada perto de um altar que ficava na lateral da igreja. Depositou as flores aos pés de Santa Rita de Cássia, acendeu as velas e abandonou-se em orações. Deveria ser alguma causa impossível, julguei. Santa Rita de Cássia tem fama de resolver qualquer coisa, principalmente partos e doenças. Será que ela estaria doente? Não, não parecia. Talvez, alguém da família? Vai saber... Fiquei ali parado, olhava para a moça e para a água benta. Havia esquecido mais este detalhe: o sinal da cruz é reforçado em seu significado quando feito com água benta. Tentava resolver o dilema: direita ou esquerda, com água ou sem água benta?
A moça do olhar oblíquo se levantou. Procurei me distrair na frente de São José, ele não ligaria se eu fingisse uma oração. Talvez uma que reforçasse a reza da moça, que a ajudasse em seus pedidos. Pensei em algo para iniciar a tarefa. Começar pelo Pai Nosso seria uma boa. Reza pronta, que não exige esforços de composição. Não fiz nem uma coisa nem outra. Havia esquecido o Pai Nosso e meu coração não estava inspirado para inventar uma reza nova.
A moça passou por mim. Seus olhos estavam cheios d’água. Lágrimas bentas, por certo. Por quem chorava? Nunca saberia. Ela despediu-se da igreja e seus santos com o sinal da cruz. Fiquei onde estava matutando: direita ou esquerda; vem a nós o Vosso reino (e depois, que vem depois?)
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