A greve virtual continua, companheiro



Sou um grevista. Nestes tempos bicudos — louco início de século — em que o desemprego atinge até os ratos, por pura falta do que roer, ser grevista é experimentar um estado de espírito indescritível. Na última quarta-feira não me conectei à internet. Aderi à greve virtual convocada por virtuais amigos do virtualíssimo sindicato dos usuários desta tremenda rede mundial de informações – incrivelmente sem donos. E por falta de donos, resolvemos nos revoltar contra os gerentes do novo meio de comunicação: os provedores e as companhias telefônicas. Estamos pagando muito para exercer o nosso direito básico de digitalizar a realidade.

Grevista virtual, organizei um piquete no meu computador. Arranjei um jeito de travá-lo. Desliguei o teclado e o mouse. Fiz mais, tirei todos os meus livros da estante e construí uma barricada intransponível entre nós. Fiquei de vigília, olhando aquela máquina pulsando sua tela de descanso.

No início da noite não resisti. Comecei a ligar para alguns amigos. Precisava de algumas informações que, normalmente, seriam obtidas facilmente caso eu estivesse conectado à rede. Falei com um amigo virtual do Mato Grosso do Sul. Perguntei a ele como estava a adesão à greve naquele Estado da Federação. Na maior cara-de-pau, ele me perguntou: ‘‘Que greve?’’. Não respondi nada. Não falo com fura-greve. Imediatamente o coloquei na minha longa lista de inimigos. Sublinhei seu e-mail com uma caneta azul, escrevi ao lado: ‘‘Persona non grata, reaça, inimigo da classe’’.

Liguei depois para Coimbra, Portugal. Tenho uma amiga virtual lá. Ela disse que nada sabia de nossa greve. Lembrei-me, pois, que a greve fora convocada só no Brasil. Pedi desculpas, e prometi um relatório completo pela infovia no dia seguinte. Ela disse que iria convocar seus pares portugueses para enviar-nos uma mensagem de solidariedade, na qualidade de representantes do Partido Comunista Português. Desliguei o telefone. Tomei novamente a minha lista de e-mails e do lado do nome de minha amiga portuguesa anotei em vermelho: ‘‘Camarada Joaquina, digna representante virtual da vanguarda do proletariado”.

Perfilei-me do lado do meu computador. Comecei a assoviar a ‘‘Internacional’’. Imaginei milhares de grevistas virtuais gritando palavras de ordem. ‘‘Internautas unidos, jamais serão vencidos.’’ Ou ainda: ‘‘Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos que o provedor vá para p.q.p.’’ E as bandeiras. Greve sem bandeira é sogra sem genro. E lá estavam elas. As bandeiras vermelhas, também virtuais, semelhantes à logomarca da Microsoft, sendo sopradas e onduladas pelo vento. Nem nas Diretas e na deposição de Collor o Brasil viu coisa igual.

Mas faltava mais alguma coisa — a polícia — é isto, a polícia. Greve sem polícia não é greve, é qualquer coisa, uma convenção de senhoritas de colégio de freiras, por exemplo. (Aviso ao leitor: escrevo, é lógico, um dia depois da greve. Este texto já estava quase terminado, mas um vírus anarquista resolveu atacar a máquina. Metade do escrito foi para o ralo virtual. Daqui em diante é uma nova versão do que eu havia escrito anteriormente). Liguei para a delegacia. Um agente da lei, mal-humorado, por sinal, atendeu-me. Perguntei se algum trotskista aproveitando-se da situação não tinha por um acaso detonado uma bomba em algum posto telefônico. Tive que desligar o telefone rápido. O cara era realmente azedo e nada educado.

Dez para a meia-noite. Nenhuma notícia. Sintonizei meu velho rádio em ondas curtas e médias. A BBC ignorou a nossa greve e apresentava um especial sobre a dupla ‘‘O Gordo e o Magro’’. A Voz da América falava sobre o perigo cubano. Na TV, uma nova receita para evitar roncar durante o sono.

Meia-noite. A greve terminara. Desfiz o piquete. Tentei mil conexões com a rede. Que nada. O bicho estava travadinho. Era a vez da greve da máquina. De imediato, peguei uma caneta e comecei a redigir um manifesto. ‘‘Um fantasma ronda os chips... PCs do mundo, uni-vos...’’.

(Texto publicado em 1999)

1 comment:

ocrecaboclo said...

Afinado contextualmente e afiado (dominador da boa e velha retórica). A pura literatura, despida de qualquer pretensão a ser pretensiosa. Minhas congratulações.

Quem dera todos tivessem a acidez e a avidez no sangue de leituras como esta, tão necessárias para rirmos e, ao mesmo tempo, mudarmos nossa pseudo-realidade.

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