“Morreu ontem.”
“Como morreu? Morrer apenas não serve!”
“Crime passional, o terceiro deste mês! Com este nós já chegamos a nossa média histórica de 3%!”
“Ainda bem! Estava preocupado, iríamos fechar o ano com esta falha grave na estatística de crimes violentos.”
“Verdade. Como explicar para o chefe do departamento que mulheres, maridos e amantes se mataram 0,001% a menos do que nos outros anos?”
(...)
Com este suposto diálogo entre burocratas, chegamos à conclusão de que a vida e as coisas que se faz durante sua brevidade pouco ou quase nada valem. Desde que nasce o homem está condenado a ser uma variável flutuante entre as diferentes formas que encontramos para nos medir e contar. Neste início de milênio, mais do que em outra época, somos a infinitesimal parcela de bilhões de gráficos.
A coisa começa lá no hospital: determina-se, numa tabela, os que nascem vivo, os inválidos e o sexo. Passamos depois a freqüentar as macroestatísticas das Nações Unidas. Podemos ser a gota d’água da superpopulação, acrescentando milésimos do nada na hipócrita pesquisa que aponta os que podem comer e os que serão mortos pela falta de alimentos. Até o fim e depois do fim, quando figurarmos apenas como um percentual na cota do coveiro, seremos medidos, comparados e analisados das mais diversas formas. Porém, sempre sem rostos, na impessoalidade, na rigidez hermética dos números.
A estatística é antes de tudo informação. Seus resultados podem ser considerados inúteis para a maioria das pessoas, que inconscientemente cada dia mais faz parte deles. Como informação, a estatística torna-se instrumento de controle e dominação do homem, das massas, dos países e da economia mundial. Os jornais surgiram para orientar os novos capitalistas nascidos nos burgos, os mercadores que atiraram por terra os senhores feudais e dominaram o operariado. Na época, o mercado resumia-se a alguns países da África, da Ásia e da Europa. Os jornais eram lentos, alguns manuscritos e de tiragens ridículas. Eles demoravam semanas para comunicar uma guerra e, não raro, quando a comunicavam, já era tarde. Fortunas se perdiam em segundos. Os investimentos hoje são feitos pelas tendências dos mercados, todos relacionados pela globalização (novo nome dado à máxima liberal ‘‘homo hominis lupus’’). Estas tendências são medidas por estatísticas instantâneas que podem ser acessadas num pequeno terminal de qualquer operadora do mercado financeiro. Desta forma, um capitalista que more em Boi Perdido pode controlar seu rico capital investido em petróleo na Arábia Saudita.
Mas é na política que a estatística se supera como forma de dominação. Tiradentes certamente não seria enforcado caso a Coroa patrocinasse uma pesquisa para saber se os brasileiros aceitavam ou não as idéias propostas pelos inconfidentes. No máximo, o Império faria uma contrapropaganda informando a seus súditos a maravilha que era fazer parte da pátria de Camões. Hoje, nem mesmo o mais tonto dos políticos dá um passo sem saber o que pensa a opinião pública — este ente que teima em responder por todos e que ignora o pensamento das minorias.
Com as estatísticas, o político fala o que o povo quer ouvir, ao mesmo tempo em que faz o que o povo não quer. Forma-se, assim, uma cadeia de ação e reação. Para todo ato desagradável é possível um discurso ao gosto de boa parte dos ouvidos, geralmente surda pelo canto da sereia da indiferença.
Definitivamente somos números e com uma pequena margem de erro, constantes. Eles sabem o sabonete que vamos comprar. A hora em que dormimos e morremos. Mas, felizmente, ignoram os que não se contentam em ser número e que, quase quixotescamente, lutam contra a estatística dos conformados e a probabilidade dos néscios.
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