“BATE QUE EU GOSTO”

Chegou e foi logo se sentando. Com o paletó todo amarrotado, cabelo imitando ninho de passarinho, gravata frouxa; seu rosto tinha as marcas do mais puro desespero.

“Você já bateu em mulher?”, perguntou-me.

Fiz que não escutei. Frederico colocou a pasta de executivo na cadeira vazia ao meu lado e esfregou os punhos nos olhos para se livrar do suor que corria em bicas de sua testa alargada por começante calva. Procurava inutilmente ignorar a abrupta pergunta do meu amigo aflito.

“Garçom, mais uma bem gelada. Mais um copo também.” Frederico aproxima-se mais de mim. Vi nos seus olhos ojeriza à si ou a alguma coisa que lhe era muito cara.

“Você já bateu em mulher?” Diacho, o garçom atendia um freguês numa mesa distante. Levantei o braço, assoviei:

“Essa cerveja vem ou não vem? Traga também um cinzeiro e mais um copo.”

“Já está saindo”, gritou o garçom que não estava vencendo o serviço. Realmente quente. Talvez o dia mais quente do ano. Finalzinho de tarde, a cidade inteira resolveu tomar cerveja e se refrescar ao ar livre.

“Você viu que jogaço ontem. Este ano não tem para o Mengo, para o Bota, pra ninguém. Quatro a zero”, provoquei Frederico, que me encarava esperando a maldita resposta para a repetida e inexplicável pergunta:

“Você já bateu em mulher? Na sua mulher?”

Acendi um cigarro: “Não. Nunca bati em mulher, porra! Que pergunta, caramba!”

O garçom serviu a cerveja e colocou o cinzeiro na mesa:

"Mais alguma coisa?"

Frederico olhava-me fixo nos olhos e fez um sinal com a mão indicando que não queria mais nada do bar. Queria uma resposta e só. Ele tremia ao segurar o copo e de um trago, fez sumir toda a cerveja. Vendo tamanha sede, enchi novamente o copo dele.

“Ajude-me, cara. Estou ficando maluco!”, implorou Frederico.

“Você não vai à missa todo domingo. Procure o padre. Eu não sou bom em dar conselhos. Tenho a vida torta com a mulherada. Você sabe: não sou bom exemplo para nada.”

“Padre? O que um padre pode saber de mulher?”

“Nem lhe digo. Alguns sabem até demais. Ultimamente, alguns se dedicam a crianças e adolescentes. Tarados e beatos! Que nojo!..."

“Você pode me ajudar, eu sei.”

“Mudando de coelho pra pato: não sendo conversa de corno, coisa que eu sei que você não é, pois boto a mão no fogo pela Ângela, pode desembuchar, então.”

“Pois é a Ângela. Estou com ela há dez anos e me convenci de que nunca a conheci de fato”, disse Frederico, a procurar cigarros nos bolsos. “Dá um dos seus. Os meus acabaram.”

Dei-lhe um cigarro e o isqueiro. De nervoso que estava, Frederico quase se queimou com a chama do isqueiro:

“Vivi todo esse tempo com uma estranha. Semana passada fomos à festa dos Castro. Você também estava lá, lembra?”, perguntou-me.

“Se lembro, festa chata pra burro! Nunca vi tanto velho junto. Parecia baile da terceira idade. Os fisioterapeutas devem ter ganhado uma nota no dia seguinte. Tinha um lá que não agüentava nem com ele mesmo e foi dançar. Não tenho nada contra velho, mas alguns têm que saber a hora de pendurar as chuteiras. Patético. Mas o Uísque era bom. Nem deu dor de cabeça.”

A cerveja havia acabado novamente. O garçom. Como sempre estava distante, levantei a garrafa vazia, assoviei novamente para ele e vi que o sujeito não gostou de ser chamado como um cão vadio.

“Saímos da festa ainda cedo”, lembrou Frederico.

“Eu também saí cedo. Uma velhinha — que por sinal acompanhava o velhinho dançarino e vestia-se como uma mocinha — começou a dar mole pra mim. Ela devia ter a idade da minha avó! Imagina como ficou a minha auto-estima. Não suporto mulher assanhada, ainda mais com a cara de minha vó.”

Frederico nem se deu conta de minha história. Ele queria solucionar a sua, para o resto se fazia surdo. Não tive alternativa, desisti das evasivas, resolvi escutá-lo.

“Ângela é que insistiu para que saíssemos cedo. Bebi o de sempre, nada além da conta. Mas Ângela exagerou. Foi a primeira vez em que a vi bêbada. Começou a falar mole. Não tem nada mais irritante do que uma mulher bêbada.”

“Mulher bêbada e velha assanhada!”, completei.

“No carro, minha mulher estava irreconhecível. Queria porque queria ir ao motel.”

“E você achou ruim. Está certo, ir com a própria mulher ao motel não tem muita graça. É algo assim como beijar a irmã, mas isso quebra a monotonia. Isso quebra. Ah, se quebra!” Dei um tapinha nas costas de Frederico:

“Grande Frederico, garanto que o desempenho foi nota dez”.

“Não brinque. É sério. Ela queria porque queria. Tive que levá-la. Você me conhece. Nunca fui num lugar desses. Ela preparou tudo: o endereço do lugar — acho que ligou antes, até — e uma sacola com suas coisas. Tudo! Deus me livre, mas tenho quase a certeza de que se eu não fosse, ela sairia com qualquer um que quisesse ir ao motel. Dá mais um cigarro.” Dei a ele mais um cigarro. Frederico tragou a fumaça e ficou por um longo tempo a observá-la a desaparecer no ar:

“Confesso que até hoje não entendi nada daquilo. O que Ângela realmente queria? Sei que todo mundo me acha pão duro. Mentira, quando o assunto é minha família sou mão aberta pra cachorro. Mas, para mim, transar em casa ou em qualquer outro lugar dá na mesma. E em casa não é só mais barato, é cômodo, prático mesmo; e depois, é só virar de lado e dormir.”

“Não precisa levantar pegar o carro, enfrentar o caminho com sono. O governo deveria fazer uma campanha de trânsito assim do tipo: transe em casa e evite acidentes”, observei, tentando aliviar o ambiente.

“Chegamos naquele quarto decorado com um gosto para lá de duvidoso e não quis entrar. Ângela teve que me arrastar. Nem fechou a porta. Estava realmente para o crime. Lembro-me de tudo. Ela perguntou se eu ainda a amava. Cobrou-me sua insatisfação sexual dizendo que há mais de dois meses não transávamos. Mentira, uma semana antes a gente tinha transado. Mas ela disse que não valia, pois eu fazia por obrigação, esperando terminar para dormir ou ver TV.”

À medida que meu amigo desfiava seu rosário parecia que se acalmava. Fez uma pausa para mais um copo de cerveja e continuou: “Ângela deixou cair as alças do vestido e ficou me mostrando os peitos e dizia com muita raiva: — Pega. Veja, sou mulher. A sua mulher. Esqueceu?”. Gritei com ela: você está bêbada! Ângela começa a chorar e a gritar. Ficou doida e começou a quebrar as taças e garrafas do bar: — Bêbada? Eu estou puta. Puta com esta vidinha besta que você me obriga a levar. Preciso de prazer. Lembra o que é prazer? — que horror, não posso nem lembrar. Ângela soluçava e chorava...”

“Realmente um horror; mas a história está boa”, disse a Frederico.

“Você sempre debochando... O horror vem agora. Eu perdi a cabeça e dei um tapa no rosto de minha mulher. Tão forte que se não fosse ela se agarrar nos móveis tinha se estatelado no chão.”

“Isso é ruim, bater em mulher dá cana!”

“E não sei disso?! Nunca bati em ninguém, nem mesmo num cachorro. Mas perdi a cabeça. Mas pensa que ela achou ruim. Ângela segurou meu colarinho e começou a gritar de novo: — Isso Frederico, bata mais! — Fiquei bobo com aquilo tudo: — Bata mais, seu cachorro! — Fiquei louco mesmo, dei mais um tapa no rosto dela, com tanta força que ela foi ao chão. Pensa que ela deu-se por vencida: — Me bata seu cachorrão! Me bata mais! — Dei nela para valer, bati no corpo, mais na bunda do que em qualquer outro lugar. Fizemos amor ali mesmo no chão do quarto, nem cheguei a tirar a roupa direito. E pela primeira vez, em dez anos, Ângela não pediu para apagar a luz.”

Ri da ingenuidade de Frederico: “Porra, cara, é só isso?! Você devia estar contente. Está preocupado à toa. Aliás, não vejo razão alguma para você estar assim, desse jeito. Fantasia de mulher. Tudo vai ficar bem!”

“Bem nada. Foi nesse dia que começou a minha desgraça.”

“Que desgraça, rapaz?”

“Desculpe-me, mas me dá mais um cigarro. Os meus acabaram e aqui não tem para vender.”

Dei-lhe a carteira inteira: “Toma, fume quanto quiser, tenho mais um maço no carro.”

“Obrigado. Desde aquela noite no motel, depois da surra, a minha mulher anda radiante. Comprou roupas novas, Está fazendo regime para emagrecer. Pega filme pornográfico na locadora para assistir e mandou as crianças para passarem as férias na casa da avó.”

“E você não está gostando?” “Como posso gostar? Você sabe da minha educação. Fui educado na sacristia, sou um homem direito. Um homem honesto e de fé. Ângela está em pecado ao agir desta maneira. Sexo para nós, pelo menos para mim, sempre foi pecado. Ângela também foi educada assim. Era linda, nunca tinha sido tocada, casou virgem, tenho certeza. Não sei o que loucura deu nela. E o pior você ainda não sabe...”

Frederico fez suspense e depois de mais um longo gole de cerveja revelou a causa de seu tormento: “Não consigo mais dormir com minha mulher. Peguei um certo receio dela depois daquela noite. Estou dormindo na sala.”

“Que bobagem!”

“Sem querer ofender meu amigo, pode ser bobagem para você que está acostumado com essas mulheres mais saidinhas. Não lhe culpo, você é divorciado, pode se dar a esses luxos. Mas Ângela é mãe dos meus filhos. Olha, já tentei o diabo para esquecer de tudo e me aproximar dela novamente, mas não consigo. Aquela não é Ângela, é uma vagabunda qualquer. É o demônio!”

Ficamos por mais algum tempo tomando cerveja. De súbito, Frederico levantou-se e despediu-se.



II

Uma semana depois, quando eu estava dando duro num projeto de um novo prédio que estava com as obras para começar, Ângela apareceu no escritório, queria falar comigo. Fiquei curioso. Ora, o que ela poderia querer ali? Talvez, ao mudar o estilo de vida, também pensasse em mudar de casa. Chamei a secretária pelo interfone:

“Nanci, mande a senhora Ângela entrar...”

Quando vi a mulher do meu amigo surgir na porta quase despenquei da cadeira. Estava com os cabelos loiros soltos, numa saia que não era só curta, era mínima, expondo suas pernas firmes e bem feitas.

“Ângela, que surpresa. Vai querer construir uma nova casa? Para você e Frederico faço o projeto de graça!”

“Infelizmente, não?”, disse Ângela, começando a chorar. Arrumei uma cadeira e dei-lhe um lenço de papel. Ela soluçava.

“O que aconteceu, afinal, por que o choro?”

Ângela chorava ainda mais. E foi aí que me dei conta da minha canalhice. Ela, que estava sentada numa cadeira bem na minha frente com as pernas cruzadas, descruzou as pernas para alcançar o novo lenço e disse em desespero:

“O Frederico sumiu...”

Não disse nada por alguns instantes, apenas pensei: — Frederico tinha razão. Isso é uma tentação do demônio. Que pernas, que pernão. Não. NÃO! Deixa disso! O Frederico é gente boa, tem filhos, não vá fazer besteiras... Seu safado.

“Faz uma semana. Na sexta-feira, ele chegou em casa muito nervoso, pegou uns trocados que eu guardo numa caixinha e disse que estava saindo para comprar cigarros.”

“Na sexta-feira passada?”, perguntei, ao tentar fixar os olhos apenas no rosto de Ângela.

“Sim e é por isso que estou aqui. Disseram-me que vocês estavam juntos no bar tomando cerveja.”

“Horário de Verão. Sabe como é, dia quente, temos que aproveitar.”

“Vocês estavam juntos?” “Sim, tomamos algumas cervejas.”

"E você não sabe para onde o meu marido foi?”

“Não. Ele tomou cerveja, conversamos um pouco e eu pensei que ele fosse depois para casa.”


III


Hoje está fazendo um ano que Frederico sumiu. Parece que foi ontem que estávamos sentados aqui nesta mesa de bar. Esta tarde está tão quente quanto aquela. Procuramos por ele até em necrotérios e asilos para alienados. O cara tomou chá de sumiço mesmo. Vai ver está fora do país, ou morreu como indigente. Quem sabe?

Ângela acaba de sentar-se na mesma cadeira em que estava Frederico antes de sumir. Está alegre. Gosta de beijar. Fico com vergonha. Todo mundo olha. Também um mulherão desses com um cara mal acabado como eu. Devem pensar que tenho muita grana.

Ela passou o dia todo fazendo compras, está ansiosa para ir para casa e diz bem baixinho no meu ouvido: “Amorzinho, tenho umas surpresinhas para mais tarde. Eu achei umas algemas e um chicotinho no sex shop e um baby-doll que forma um conjuntinho lindo com o sutiã e a calcinha. Tudo rendado. Tem uma máscara também, você não nem vai acreditar!”

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